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[Ilha de Duarte de Lemos], de Luis Teixeira (ca. 1586)
Luís Teixeira foi um dos poucos cosmógrafos portugueses que de fato percorreu e reconheceu a costa do Brasil, na década de 1570. Como escrevem Maria Helena Dias e Maria Fernanda Alegria, Luís Teixeira e seus filhos Pedro e João Teixeira, além do neto homônimo deste último, foram importantes cosmógrafos portugueses, membros de uma das famílias mais importantes para a cartografia de Portugal entre fins do século XVI e fins do XVII.
Os cosmógrafos tinham a função de fazer não só as cartas, mas também instrumentos de navegação para serem usados nas embarcações portuguesas. E essas funções a família Teixeira exerceu por cerca de cinco gerações em Portugal e na Espanha. Luís Teixeira, tendo atuado por mais de 50 anos, foi o fundador de uma nova escola de cartografia portuguesa em seu período, tendo desenvolvido um estilo próprio que, posteriormente, foi copiado por seus descendentes. Ele foi aprendiz de Pedro Nunes, também famoso cosmógrafo português, pelo qual foi examinado, junto com Pedro Reinel, para o cargo de cosmógrafo da coroa. Além disso, enquanto atuou, manteve correspondência com importantes nomes da cartografia mundial, como Abraham Ortelius.
Como afirmado, Luís Teixeira esteve no Brasil, entre os anos de 1573 e 1578, quando teria acompanhado o Governador Luis de Brito d’Almeida ao Novo Mundo. Teixeira teria sido mandando “ver, & emendar a costa do Brasil”. Seu objetivo era atualizar as informações que se tinha em Portugal e produzir novo material, na forma do Roteiro de todos os sinais, um dos mais antigos atlas da América portuguesa. Este roteiro tem 13 cartas do litoral do Brasil e é exatamente nele que se encontra o primeiro mapa da Capitania do Espírito Santo. A lista completa das cartas presentes na obra é:
- Vila de Olinda
- Cabo de Santo Agostinho
- Bahia de todos os Santos
- Ilhéus e Vila de São Jorge
- Rio Grande, Vila de Santo Amaro e Vila de Porto Seguro
- Vila do Espírito Santo
- Cabo Frio
- Rio de Janeiro
- Pão de Açúcar ao Monte de Trigo
- Sam Vicente
- Rio da Prata
- Estreito de Magalhães
- América do Sul, com a Linha da Demarcação.
O Espírito Santo foi desenhado de forma cuidadosa, e os elementos presentes e ausentes (discutidos adiante) chamam a atenção do leitor. Estes detalhes, justificáveis pelo tamanho e escala utilizados, são melhorados nos mapas posteriores: já no século XVII as escalas permitem uma boa visualização da baía de Vitória, e novas descrições da terra de Santa Cruz atualizam as informações sempre que possível.
O mapa do Espírito Santo é acompanhado do seguinte texto, presente no roteiro de Luis Teixeira:
Se for pera porto seguro hindo dobrado os baixos dos abrolhos, e tomado desanoue graos e meo poderei hir buscar a terra por vinte graos / e assi poderei hir seguro porque nesta Costa nam há monções1Veja-se, além do que dissemos na nota (1), o Roteiro – DHN: “De Vitória para o sul os ventos dominantes provém do setor NE-N (retôrno dos alísios), menos regulares e interrompidos por calmarias. Frequentemente, entretanto, mormente no outono e no inverno, sopram ventos do setor SE-S-SW, ventos frios, de rajada, que podem ser violentos” (I, pág. 9). Conhecedor deste regime, o roteirista alerta o navegante de que não há mais necessidade de aterragem ao norte ou ao sul do ponto desejado conforme a monção em curso.. Se for acaso por desanoue graos e meo e vir terra rasa que me fique ao nordeste, estarei da banda do norte Spiritu sãto e direi que he terra de Sobre Cricare2O topônimo que Ruiters e van Keulen deturparam para “Sobrigueriquerem” (A Tocha da Navegação, pág. 58), nos é identificado por Aires do Casal: “O R. de S. Matheus, originalmente Cricare” (ob. Cit. II, pág. 76). / e sobre o Rio doçe / e hirei correndo esta terra de longo até me altearem as Serras3É absolutamente conforme a descrição, pois assim vem no Roteiro – DHN a costa ao sul do rio Doce: “Da barra do rio Doce até a baía do Espírito Santo, numa extensão de cerca de 46 milhas, a costa inclina-se a princípio para o SSW, tornando-se mais elevada com o aparecimento, ao fundo, da Serra dos Aimorés” (II, pág. 341). e não me fiarej na primeira que vir4Outra notável observação, pois o Roteiro – DHN, ainda hoje, adverte o mareante para não se enganar: “O monte Muçurata, com 830 metros de altitude, é visível até cerca de 60 milhas. É o ponto culminante da serra dos Aimorés, apresentando um cimo ondulado, com três elevações distintas, que lhe dão alguma semelhança com o morro Mestre Álvares” (II, pág. 341) somente verei huã serra grande Redonda que esta ao longo do mar, a que chamão / Serra de mestre aluaro, e terei aviso que hindo demãdar esta serra da banda do norte de lla verei hum Rio que chamão dos Reis magos, e hindo pello Sul ate descobrir a boca da bahia no Cabo desta serra da bãda do Sul; tem huã ponta a que chamão ponta do tubarão / e da banda do Sul da bahia5São os morros da Penha e Moreno, até hoje utilizados como conhecença para demandar o porto de Vitória. A carta-plana que ilustra este trecho do roteiro mostra, muito claramente, o M. Moreno, à época chamado de João Moreno. tem dous mõtes altos, e pondome no meo da bahia entrarei por ella por .20. graos daltura em que ella está.
E yndo entrando per esta bahia do Spiritu santo que deixe huã bahia que está na boca da barra á banda do Sul6Observe-se a Carta Brasileira n. 1401 (Porto de Vitória). Facilmente será identificado o local descrito: É a Enseada de Vila Velha (atual Espírito Santo)., de mym e hirei abalroar com huã ylha que está dentro, e deixalaei pella bãda do norte de mym7Transposta a barra, se continuarmos a navegar no mesmo rumo, atingiremos a ilha do Espírito Santo; para alcançar Vitória (a Villa do Spu Sãto do “Roteiro da Ajuda”), teremos que navegar pelo braço sul do desaguadouro dos rios Santa Maria, Marinho e Cariacica (os dois braços, norte e sul, formam a ilha do Espírito Santo), chamado estuário de Santa Maria.; e demorando8No ms. ocorre, em lugar de demorando, a forma errônea demarando. esta ylha ao norte ou ao nordeste poderei surgir que tudo he limpo./.
E se por ventura asertar de hir em esta derrota e for por .20. graos verey muitas serras e verei huã alta e Spinhosa que se chama, a Serra de Goarapary, e verei outra da banda do norte della que se chama/ a Serra do picaõ9Julgamos que a toponímia do “Roteiro da Ajuda”, embora idêntica à atual (se considerarmos “picão” = Perocão), refere-se a acidentes diferentes dos hoje conhecidos como serra do Guarapari e serra do Perocão,pois o primeiro topônimo não mais designa uma serra ao sul de Perocão (ou “picão”) e sim outra, mais para o interior (cerca de 20 milhas da costa), ao norte da serra do Itapemirim. No entanto, Aires do Casal, no começo do século passado, assim nomeava os acidentes (grifos nossos): “Montes. Os mais notáveis na vizinhança, e proximidade do mar sam a Serra Guarapary sobre o rio deste nome; a de Perocão ao Norte daquela” (ob. Cit., II, pág. 58). Mais adiante, diz ser o rio Guarapari “estreito e profundo na proximidade do mar, onde atravessa a cordilheira”. Conciliando tudo o que foi dito com o exame da Carta Brasileira n. 1400, julgamos que a hoje denominada Serra do Perocão recebia antigamente dupla denominação: “Guarapary” ao sul e “picão” mais ao norte. Lembramos, no entendo que o holandês Ruiters afirmou: “O cabo (sic) Pero Cão é um morro alto e a terra que lhe fica ao norte, uma serrania pedregosa e abrupta, chamado pelos portugueses Guarapari”., estas estão da banda do Sul do Spiritu santo, e terei aviso que quando vir estas Serras. Verei tambem tres ylhas pequenas juntas ao Sul dellas10São até hoje conhecidas quantitativamente: Três Ilhas (3 milhas NE da ponta de Setiba)., e verei outra pequena redonda escaluada11Recebeu o nome condizente com sua aparência: I. Escalvada. á terra deste Ylheo acharei huã bahua muito grande12O “ylheo” é a Escalvada e a baía, as enseadas de Perocão e Guarapari, entre a ponta de Setiba e a foz do Garopas, como pode ser visto na Carta Brasileira n. 1404 (Enseadas de Perocão e Guarapari). pera poder Surgir nella / E se quizer entrar hirei a oeste com a Serra e entrando pera dentro. Ficarmeá huã Ylha rasa da banda do norte que se chama do Repouso13A navegação seria feita diretamente a oeste na altura do Perocão atual (marcando-se-lhe os picos mais meridionais que vetustamente eram chamados “Serra de Goarapary”); neste rumo, seria deixada a boreste (banda do norte, no dizer do roteirista) a ilha Raposa, evidentemente a “Repouso” do “Roteiro da Ajuda”, ilha que com o morro da Pescaria constituem pontos notáveis para o reconhecimento da barra.. está muito ao longo de terra e poderseá surgir a terra della/ E destas tres Ylhas ao Spiritu santo ha doze legoas/ e vindo ao norte veras outro ylheo soo e hirmei14Em lugar de hirmei [= ir-me-ei], ocorre no ms. himei. ao mar delle e logo se me descubrirá a boca da bahia15Este trecho é uma demonstração de como era como ao navegante, por temor aos Abrolhos (e só por isso, uma vez que o regime de ventos, não sendo mais o de monções, conforme vimos na nota (44), tornava desnecessária esta ultrapassagem; note-se que não mais aparecem os até aqui comuns “tempos de nordestes” e “tempos suestes”), ultrapassar muito o ponto de aterragem, na demanda da baía do Espírito Santo, indo reconhecer terra 20º ao sul, em Guarapari. Quando isto acontecia, era necessário rumar ao norte, correndo a costa (“vindo ao norte”) em busca do porto. Nesta navegação, era necessário passar ao largo do “outro ylheo”, isto é, a I. dos Pacotes (2 milhas a SE da Ponta de S. Luzia), mostrada na carta-plana do fólio 12 como “J. escaluado”. É interessante observar o cuidado com que eram observados os perigos à navegação: o “Roteiro da Ajuda” aconselhava a passagem “por fora” da I. dos Pacotes, embora existe entre ela e o continente um canal de 1 milha de largura, fundo de 6 a 20 metros (Roteiro – DHN, I, pág. 350)./ a qual está em .20. graos daltura e por elles entrarej pera dentro vendo ylhas e sinaes que abaixo se me mostrão.
Uma edição comentada da obra de Luis Teixeira foi publicada em 1968, aos cuidados de Max Justo Guedes. Abaixo, estão os comentários de Guedes e as notas que ele fez para o trecho do roteiro copiado acima
Carta-planta da Baía do Espírito Santo e suas proximidades (comentário de Max Justo Guedes)
Confrontada com a Carta Brasileira n. 1401 (Porto de Vitória), a carta-plana, embora assinale os pontos conspícuos da região e lance-os em suas posições relativas bastante bem, peca pelo traçado da baía e colocação de suas ilhas. A principal delas, ilha do Espírito Santo, foi muito reduzida no sentido leste oeste, quase não mostrando a extensa costa sul onde está a cidade de Vitória; as demais seriam impossíveis de serem identificadas, se consideradas apenas as suas posições relativas. Cremos ser este um dos piores traçados do cartógrafo.
Analisado em As representações cartográficas da Capitania do Espírito Santo no século XVII, de Fabio Paiva Reis.
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